Tradução de Pedro Sette-Câmara. English
Nota do tradutor: em inglês, a palavra atonement faz parte da língua corrente, sendo inclusive o título de um famoso romance de Ian McEwan. Em português, ela costuma ser traduzida como “expiação”, mas a ideia de to atone for one’s sins é um pouco distinta da ideia de “expiar os pecados” ou, na fala popular, de “pagar os pecados”. Em português, a noção que temos é a de uma violência compensatória, que restabeleceria uma espécie de equilíbrio. Por outro lado, a ideia de atonement, como gostam de ressaltar os anglófonos, vem de at + one + ment, de tornar um aquilo que estava separado.
Embora minha posição como tradutor seja em geral conservadora e domesticadora, neste texto me parece que temos algo novo a ponto de recusar a palavra “expiação”, associada à teoria da substituição penal, e justificar o uso da palavra “adunação”, existente, dicionarizada, mas raríssima. Tão rara, aliás, que eu mesmo sou a primeira pessoa que conheço a usá-la em português. Ela tem a dupla virtude de manter a mesma raiz latina de atonement (at + one, ad + um) e o mesmo sentido de “reunião”, de “constituição de um todo”. Como o autor está propondo algo bem distinto da noção penal de “expiação”, optei pela palavra adunação.
Resumo: O que significa dizer que Jesus morreu para nos salvar? A explicação tradicional da adunação — em que Jesus se torna um sacrifício substitutivo para o pecado humano — revela-se problemática enquanto for entendida como teoria. Na experiência de Israel, a adunação não era de jeito nenhum uma teoria. Era uma liturgia, cujo objetivo não era aplacar um Deus que de outro modo não seria misericordioso (a imaginação asteca ou pagã), mas a ação mais subversiva em que a atividade criadora, salvífica, e redentora de Deus é derramada para nós apesar de nosso pecado humano. Em vez de invocar a ideia do sacrifício como algo que Deus exige de nós, ao tornar-se a vítima em nosso lugar Cristo põe fim de uma vez por todas à insistência humana em vítimas sacrificiais. É isso que faz da Eucaristia um acontecimento litúrgico com implicações éticas tão profundas.
Tentei, em três capítulos (1) de On Being Liked, estabelecer algumas bases para pensar o que significa dizer que Jesus morreu para nos salvar. Era, e certamente ainda é, um projeto em andamento. Desde que escrevi aqueles capítulos fui muito ajudado pela obra de Margaret Barker, especialmente por The Great High Priest (2) e por The Revelation of Jesus Christ (3), seu estudo do livro do Apocalipse, em levar isso adiante. As intuições de Barker me parecem combinar-se extraordinariamente bem com o trabalho de detetive feito no Novo Testamento por estudiosos como J. Duncan M. Derrett (4) e pela antropologia do desejo que René Girard tornou luminosa para nós (5), oferecendo a possibilidade de um entendimento mais rico e mais profundo da adunação, entendimento que, espero, não apenas ajudará a superar divisões dentro do cristianismo quanto à maneira de entender a morte de Jesus, mas também oferecerá uma visão muito mais positiva da judeidade daquela morte salvífica do que estamos acostumados.
Assim, eu gostaria de apresentar uma espécie de relatório de andamento a respeito de aonde eu acho que esse entendimento está indo, tentando defender uma tese junto a vocês. Minha tese é que o cristianismo é uma religião sacerdotal que entende que é a superação da nossa violência por parte de Deus, que substitui a vítima dos nossos sacrifício típicos, que abre nossa capacidade de gozar a plenitude da criação como se a morte não existisse.
A primeira coisa que devo fazer, portanto, é ensaiar minha breve explicação do que tradicionalmente é chamado de teoria da adunação. É contra isso que estamos. É uma certa cristalização de textos tramados de um jeito que nos mantém cativos, e meu interesse é passar dessa visão bidimensional para uma visão tridimensional, e ver que, na realidade, todas as linhas criativas na história fluem numa direção inteiramente distinta. Assim, eis a história padrão, a qual tenho certeza que vocês todos já ouviram antes, em alguma versão:
Deus criou o universo, incluindo a humanidade, e ele era bom. Depois, de algum modo, a humanidade caiu. Essa queda foi um pecado contra a bondade, a misericórdia, e a justiça infinitas de Deus. Por isso, havia um problema. Nós, humanos, não podíamos, por conta própria, restaurar a ordem que tinha sido desordenada, muito menos compensar termos desonrado a bondade infinita de Deus. Nenhuma compensação finita poderia compensar uma ofensa com ramificações infinitas. Deus teria tido todo o direito de destruir a humanidade inteira. Porém, Deus não era apenas justo, mas misericordioso, por isso meditou sobre o que fazer para resolver o imbroglio. Será que ele poderia ter deixado a questão por conta de sua misericórdia infinita? Bem, talvez ele quisesse isso, mas eles também estava obrigado por sua justiça infinita. Só um pagamento infinito seria suficiente, algo que os humanos não podiam oferecer; Deus, porém, poderia. E no entanto o pagamento teria de vir do lado humano, do contrário não seria um pagamento real que apaziguasse o ultraje. Assim, Deus teve a ideia de enviar seu Filho ao mundo como humano, para que seu Filho pudesse pagar o preço como humano, o qual, já que ele também era Deus, seria infinito e assim traria a satisfação necessária. Desse modo, toda essa história lamentável poderia ser convenientemente encerrada. Os humanos que aceitassem cobrir seus pecados aferrando-se ao precioso sangue do Salvador que o Pai sacrificou para si mesmo, ou sendo cobertos por esse sangue, seriam salvos de seus pecados e receberiam o Espírito Santo, por meio do qual conseguiriam agir segundo a ordem original da criação. Desse jeito, ao morrer, eles poderiam ao menos herdar o céu, o que era o plano desde sempre, antes que a queda bagunçasse tudo.
Agora, ao invés de zombar desse enredo, gostaria de sugerir que seu problema é ser muito pouco conservador. Quero apresentar uma versão muito mais conservadora. E o primeiro modo como pretendo ser conservador é sugerindo que o principal problema com essa versão convencional é que ela é uma teoria, ao passo que a adunação era, antes de tudo, uma liturgia.
Agora, esse contraste não é tão evidente no nosso mundo porque nossa tendência é ter uma noção empobrecida de liturgia. E não percebemos o quanto nos fixarmos na teoria complica nossas vidas. Porém, efetivamente tratar a adunação como uma teoria significa que ela é uma teoria que pode ser apreendida — e, uma vez apreendida, você a “pegou” —, ao passo que uma liturgia é algo que acontece com você e em você. Quero voltar e recuperar um pouco do que era a liturgia da adunação, porque, quando a entendemos, começamos a ter uma ideia do que palavras como “adunação” e “salvação” estão dizendo.
Lembremos que estamos falando de uma liturgia judaica muito antiga, a qual só conhecemos por reconstruções fragmentárias do que pode ter acontecido no Primeiro Templo. Para essa liturgia, o sumo sacerdote entrava no Santo dos Santos. Antes de o sumo sacerdote entrar no Santo dos Santos, ele sacrificava um touro ou um bezerro para expiar seus próprios pecados. Em seguida, ele entrava no Santos dos Santos, tendo escolhido na sorte um dentre dois carneiros ou bodes — um bode que era o Senhor, o outro bode seria Azazel (o “diabo”). Ele levava o primeiro consigo para o Santo dos Santos e o sacrificava; e, com ele, o sumo sacerdote salpicava a Sede da Misericórdia (o trono acima do qual ficavam os Querubins), a Arca, etc.
Só o Sumo Sacerdote podia entrar no Lugar Santo. Agora, o interessante era que, depois de expiar os próprios pecados com o touro, ele então vestia um traje branco brilhante, que um traje de anjo. A partir daquele momento, ele deixava de ser um ser humano e se tornava o anjo, que tinha como um de seus nomes “Filho de Deus”. E ele poderia usar “o Nome”, querendo dizer “o nome que não pode ser pronunciado”, o Nome do Senhor, representado por suas quatro letras, YHWH. Com o nome contido nos filactérios ou em sua testa ou envoltos em seus braços, ele poderia entrar no Santo dos Santos. Naquele momento ele seria Yahweh, uma emanação angélica do Deus altíssimo. (Lembra da frase “Bendito o que vem em nome do Senhor”? É uma referência ao rito de adunação, a vinda do sumo sacerdote — uma das muitas referências ao rito da adunação que temos no Novo Testamento — e que amplamente ignoramos!).
Assim, o sumo sacerdote torna-se uma emanação angélica de YHWH; e um dos títulos do anjo é “o filho de Deus”. Ele sacrifica o bode que é “o Senhor”, e salpica seu sangue naquele espaço. O propósito disso era remover todas as impurezas que tinham se acumulado no que se pretendia que fosse um microcosmo da criação, porque o Santo dos Santos, no entendimento do Templo, era o lugar em que o Criador habitava, além e fora da Criação. A ideia era que a Criação tinha começado a partir do Véu do Templo, ao passo que o Lugar Santo ficava além do tempo, da matéria, e do espaço. O rito da adunação tinha a ver com próprio Senhor, o Criador, sair do Santo dos Santos para libertar as pessoas de suas impurezas, pecados, e transgressões. Em outras palavras, o rito inteira era exatamente o inverso que costumamos imaginar que seja um rito sacerdotal. Nossa tendência é ter uma “imaginação asteca” no que diz respeito ao sistema sacrificial. A grande marca do sistema sacrificial é que o sacerdote sacrifica algo a fim de apaziguar alguma divindade.
O rito sacerdotal judaico já era um progresso enorme para além desse mundo. Eles entendiam muito bem que eram os ritos pagãos que sacrificavam vítimas a fim de assegurar a continuidade da criação. E um dos modos como eles tinham avançado além disso, antes mesmo da queda do Templo e do Exílio na Babilônia, era o entendimento de que era na verdade Deus quem estava operando, era Deus que vinha querendo restaurar a criação, por amor a seu povo. Assim, é YHWH quem surge do Santo dos Santos vestido de branco a fim de perdoar os pecados do povo, e, mais importante, a fim de permitir que a criação flua.
A ideia é que os humanos tendem a escangalhar a criação; e é Deus quem surge do lugar que simboliza aquilo que é desde antes de o começo da criação, “o lugar do Criador”. O Santo dos Santos era o lugar que simbolizava “antes do primeiro dia” — o que, é claro, significava antes do tempo, antes de a criação passar a existir.
O sacerdote surgia dali e atravessava o Véu do Templo. Esse véu era feito de um material muito rico, representando o mundo material, aquilo que era criado. Nesse momento, o sumo sacerdote vestia um traje feito do mesmo material que o Véu, a fim de demonstrar que aquilo que ele estava representando era Deus vindo e entrando no mundo da criação de modo a fazer a adunação, a desfazer o modo como os humanos tinham atado essa criação. E, naquele momento, tendo surgido, ele então salpicaria o resto do templo com o sangue que era o sangue do Senhor.
Agora, aqui está o ponto interessante: no entendimento do Templo, o sumo sacerdote a essa altura estava agindo “na pessoa de Yahweh”, e era o sangue do Senhor que estava sendo salpicado. Era um movimento divino para libertar as pessoas. Não era — como tantas vezes imaginamos — um sacerdote satisfazendo uma divindade. O motivo pelo qual o sacerdote tinha de fazer uma expiação prévia era que ele estava prestes a tornar-se um sinal de algo bem outro: a ação para fora. O movimento não é para dentro, para o Santo dos Santos; o movimento é para fora, desde o Santo dos Santos.
Assim, o sacerdote então passaria pelo Véu — indicando o Senhor entrando no mundo, no mundo criado — e salpicaria todo o resto do Templo, assim libertando-o. Depois disso, no papel da pessoa que estava carregando os pecados que tinham sido acumulados, ele as punha na cabeça do que chamamos de “bode expiatório”, Azazel, que então seria levado para fora da cidade, para a beira de um precipício e lançado, onde seria morto, para que os pecados do povo fossem levados embora.
Até onde se pode saber, era isso o rito da adunação. Mas o que há de fascinante é o seguinte: o entendimento judaico estava muito à frente das versões “astecas” que lhe atribuímos. Já naquela época se entendia que ele não tinha a ver com os humanos tentarem desesperadamente satisfazer Deus, mas com Deus tomar a iniciativa de irromper na nossa direção. Em outras palavras, a adunação era algo que tinha em nós os beneficiários. Esse é o primeiro ponto que quero esclarecer ao enfatizar que estamos falando de uma liturgia e não de uma teoria. Estamos falando de algo por que passamos ao longo do tempo como parte de uma iniciativa divina benfazeja no nosso sentido.
Isso põe muitas coisas sob uma perspectiva ligeiramente distinta daquela a que estamos acostumados. Isso significa, por exemplo, que a imagem de Deus na teoria que temos, que exige que a ira de Deus seja satisfeita, é uma noção pagã. No entendimento judaico, ao contrário, era algo que Deus oferecia a nós. Agora, aqui vem a questão crucial: o primeiros cristãos, que escreveram o Novo Testamento, entendiam muito claramente que Jesus era o verdadeiro sumo sacerdote, que estava restaurando a aliança eterna que tinha sido estabelecida muito tempo atrás; que estava vindo do Lugar Santo para oferecer-se como expiação por nós, como vivenciamento e demonstração concreta do amor de Deus por nós; e que Jesus estava atuando isso de maneira muito deliberada.
Há muitos lugares em que temos indicações desse linguajar. Um deles é Jesus fazendo o papel de Melquisedeque. Por exemplo, o anúncio do Jubileu, que Jesus prega na sinagoga de Nazaré (6), era o modo como o sumo sacerdote Melquisedeque voltaria e trabalharia pela libertação, pela “adunação” ou “redenção” do povo. De fato, o que Jesus diz e faz em Lucas é cumprir o programa de Melquisedeque, que inclui ir até Jerusalém e ser morto.
Nos outros Evangelhos, isso é retratado de maneiras diferentes. O exemplo clássico é o cap. 17 do Evangelho de João. A última fala de Jesus aos discípulos antes da Paixão é uma fala baseada na oração da adunação do Sumo Sacerdote. E Jesus então vai representar o papel do sumo sacerdote que está disponibilizando o novo templo em seu corpo (o que, é claro, João já tinha sugerido no começo de seu Evangelho).
Um dos modos como isso é contado no Evangelho de João é que Jesus é crucificado na quinta, e não na sexta. Assim, na tarde de quinta ele vai para fora dos muros da cidade para ser morto exatamente na mesma hora — três da tarde — em que os sacerdotes no Templo matavam os cordeiros para a festa da Páscoa. Assim, enquanto eles estavam matando os cordeiros, o verdadeiro cordeiro, aquele que era identificado como “o cordeiro de Deus”, estava indo para o lugar da execução para ser morto. Mas — bizarramente — ele ia vestindo uma “túnica inconsútil”, uma túnica sacerdotal: daí a importância de essa túnica ser “inconsútil”, e de ser preciso tirar a sorte para ver quem ficaria com ela, em vez de ela ser rasgada. (7) Assim, o sumo sacerdote estava indo — o Senhor estava indo — para “o Templo”, onde ele seria “o Cordeiro”, pois, como sabemos, quando o procuram depois de sua morte, eles veem que nenhum osso de seu corpo foi quebrado, aludindo ao cordeiro pascal.
A identificação está completa. E, claro, o grito de Jesus na cruz no Evangelho de João é “Está concluído”, “Está cumprido”, querendo dizer que a adunação, e portanto a inauguração da criação, está concluída. No Evangelho de João, o “Irei para o Pai” é sempre sinônimo de “Irei para minha morte, na qual serei erguido, e é assim que glorificarei o Pai”. Sabemos dessas coisas todas, mas normalmente não as vemos no contexto de Jesus sendo o verdadeiro sumo sacerdote agindo como sumo sacerdote.
Dá para ver que era assim que o texto era lido porque no Evangelho de João, imediatamente depois disso, na ressurreição, somos levados para o jardim. Estamos de volta ao “primeiro dia”, e estamos no “jardim”. Pedro e João vêm ver, e em seguida Maria Madalena aparece. O que ela vê? Dois anjos! E onde os dois anjos estão sentados? Um na cabeça e outro aos pés de um espaço que está aberto porque a pedra foi rolada. Que espaço é esse? É o Santo dos Santos. É a sede da misericórdia, com a presença dos Querubins. (8) O Santo dos Santos agora está aberto, porque a criação pode fluir com total liberdade. Nada mais atravanca a criação. O Santos dos Santos foi aberto. O Sumo Sacerdote que não precisava sacrificar um touro por seus próprios pecados, porque ele mesmo não tinha pecado, entrou. E em seguida saiu do lugar da criação e entrou no mundo inteiro.
E lembre que na epístola aos Hebreus, assim como em boa parte da literatura paulina, e no Evangelho de João, Jesus era o Verbo de Deus que estava com a criação desde o começo — “todas as coisas foram criadas por ele”. Esse é o linguajar do sumo sacerdote para Aquele que vem de Deus para oferecer a adunação a fim de desabrochar a criação. É isso que está sendo cumprido. E você fica com a sensação de que no Evangelho de João há uma percepção de que foi isso que foi operado: Jesus cumprindo a liturgia da adunação. Até aí, ótimo! Essa é uma explicação que nos permite ver Jesus “subvertendo por dentro” a antiga liturgia da adunação — a qual também era praticada no período do Segundo Templo.
No Segundo Templo não havia mais uma sede da misericórdia. Não havia mais nada dentro do Santo dos Santos. Os mistérios sacerdotais tinham sido perdidos. E essa era uma das razões pelas quais havia empolgação por haver um sacerdote que fosse cumprir as promessas e restaurar os mistérios sacerdotais. Mas, claro, “restaurar” de um jeito torto, “nos bastidores” — isto é, o verdadeiro sumo sacerdote estava empenhado em ser o sacrifício, “a vítima”, o sacerdote, o altar, e o templo na pilha de lixo da cidade, ao mesmo tempo em que os caras corruptos da cidade — era assim que os judeus comuns os viam naquela época — iam fazendo tudo tudo mecanicamente no Segundo Templo, corrupto, o que não interessava muito ao povo. Eles não achavam que ali estava o negócio de verdade. Muitos dos contemporâneos de Jesus teriam visto o Templo que conheciam e os sacerdotes que o geriam como, com o perdão da palavra, a versão diet Pepsi de uma Coca há muito desaparecida.
Do nosso ponto de vista, esses são todos aspectos da adunação. O que Jesus estava fazendo era cumprir um conjunto de profecias relacionadas a um acontecimento litúrgico, o qual, para nós, é amplamente misterioso. O motivo pelo qual eu quis falar dele é que ele é muito importante para nosso entendimento quando vemos que não se trata apenas de uma abolição de algo que era mau, mas alguém cumprindo algo que era considerado bom, mas não bom o bastante. Percebem a diferença? Isso significa que a nossa tendência a interpretar o universo inteiro do sacerdócio e do sacrifício como “um infeliz resquício semita” é na verdade muito errada. O sacerdócio judaico — além de ser responsável por alguns dos textos mais extraordinários que temos naquilo que sobreviveu das escrituras judaicas — era também o padrão que permitia a manutenção da relação entre criação e salvação. E esse é o padrão da fé católica, da maneira como quero explorá-lo um pouco mais: é a noção de que Deus disponibiliza para nós a oportunidade de participar da plenitude da criação ao tornar-se um sacrifício para nós em nosso meio.
Todos temos — aliás com toda a razão — alergia à liturgia por si mesma. Temos toda a razão porque essa é uma das coisas em que o Novo Testamento insiste. A genialidade de Jesus consiste, entre outros, em unir o litúrgico e o ético, e é por isso que a adunação é importante para nós. Porque aquilo que Jesus fez não foi como que cumprir uma série de profecias relacionadas a um rito ancestral meio bizarro cheio de sangue e de churrasco. O que Jesus fez — e isso é que é fascinante — foi uma inovação antropológica extraordinária. E é nesse sentido que a adunação é “substitutiva”.
Quero fazer aqui um pequeno aparte: normalmente, na abordagem da adunação substitutiva que se baseia na “teoria”, entendemos que a substituição funciona da seguinte maneira: Deus estava zangado com a humanidade; Jesus diz: “Cá estou”; Deus estava precisando soltar um relâmpago, e aí Jesus disse: “Pode soltar em mim”, tomando o nosso lugar. Zás! O relâmpago é disparado: o sacrifício é executado: Deus está contente. “Pronto, agora acabou minha sede de sangue!”
O que é interessante é que o Novo Testamento aponta para um jeito inteiramente novo de conceber isso: o que Jesus estava fazendo era substituir uma série de substituições por ele mesmo. O sistema sacrificial humano costuma funcionar da seguinte maneira: as formas mais primitivas de sacrifício são sacrifícios humanos. Depois que as pessoas começam a perceber o que estão fazendo, isso é transferido para sacrifícios animais. Afinal, é mais fácil sacrificar animais, porque eles não revidam tanto assim; por outro lado, se você precisa menter um sistema sacrificial que exige que você consiga vítimas o tempo todo, o mais comum é que você precise manter uma máquina de guerra para obter vítimas suficientes para que o sistema continue funcionando; ou então você precisa ter guardados alguns pharmakons (10) — pessoas convenientemente meio de fora, meio de dentro, que vivem magnificamente, e se divertem a valer, até que vem uma crise em que você precisa sacrificar alguém, e aí você os sacrifica. Mas isso é feio, e as pessoas, afinal, são humanas; assim, os animais começaram a ser sacrificados no lugar delas. E em algumas culturas você passa dos animais para formas mais simbólicas de sacrifício, como pão e vinho. Você encontra quase qualquer variação cultural do tema da substituição sacrificial.
O que é interessante é que Jesus toma o caminho exatamente inverso; e ele nos explica que vai pelo caminho inverso. “Na noite em que ia ser entregue…”, o que ele fez? Ele disse: “Em vez do pão e do vinho, este é o cordeiro, e o cordeiro é um ser humano.” Em outras palavras, ele pôs de volta um ser humano no centro do sistema sacrificial como sacerdote, mostrando assim a verdade do sistema sacrificial, e acabando com ele. Ele era o Sumo Sacerdote dando pedaços de si mesmo como cordeiro aos demais sacerdotes, exatamente como o Sumo Sacerdote distribuiria pedaços do cordeiro sacrificado aos demais sacerdotes.
Assim você tem uma substituição genuína que faz muito sentido dentro da vivência cristã da Adunação. Todos os sistemas sacrificiais são substitutivos; porém, o que temos com Jesus é uma inversão exata do sistema sacrificial: ele recua e ocupa o espaço de modo a deixar claro que tudo não passa de assassinato. E que não precisa ser assim. É isso que começamos a entender no Evangelho de São João: que o que Jesus estava fazendo era na verdade revelar o princípio mentiroso do mundo. A estrutura humana é mantida por nós matando-nos uns aos outros, convencendo-nos do nosso direito e do nosso dever de fazer isso, fortalecendo-nos assim por cima de nossas vítimas e contra elas. O que Jesus entende estar fazendo no Evangelho de São João é revelar a maneira como esse mecanismo funciona. E, ao revelá-la, tirar toda a força desse mecanismo, deixando claro que ele é uma mentira: “seu pai era mentiroso e homicida desde o princípio”. É assim que opera o “príncipe” — ou princípio— deste mundo.
Assim, o que temos no Evangelho de São João é um claro entendimento de que desfazer a vitimação não é apenas uma questão litúrgica, não é apenas o cumprimento de uma liturgia. Jesus está pondo a si mesmo no centro daquilo que a tradição litúrgica estava tanto recordando quanto escondendo, a saber, o sacrifício humano, e assim possibilitando que comecemos a viver sem sacrifício. E isso inclui não só o sacrifício litúrgico, mas, mais importante, o mecanismo humano de sacrificar outras pessoas para que possamos seguir levando a vida. Em outras palavras, o que Jesus estava começando a possibilitar era que começássemos a viver como se a morte não existisse, e assim não termos de nos proteger contra ela garantindo que temos alguém em quem pisar. Vocês percebem como ele junta o ético e o litúrgico no mesmo espaço, de modo que esse passa a ser um espaço de densa revelação antropológica? Quando Jesus une o entendimento litúrgico e ético do que é ser vítima, assim mostrando-nos aquilo que costumamos fazer e como não precisamos mais fazer isso, Deus está nos mostrando algo a respeito de nós mesmos.
Agora, isso era visto com bastante clareza ne época, como fica claro a partir das referências no Evangelho de São João ao entendimento que Jesus tinha desse mecanismo como o do “príncipe deste mundo”. Porém, em São Paulo também há momentos muito reveladores.
Aqui podemos ler uma história de 2 Samuel (11) que nos leva diretamente para o mundo da expiação, da propiciação, e da adunação, na esfera antropológica, não na esfera litúrgica. Lembrem-se de que as duas estão ligadas, mas ainda não foram claramente ligadas:
E houve, em dias de Davi, uma fome de três anos, de ano em ano; e Davi consultou ao Senhor, e o Senhor lhe disse: É por causa de Saul e da sua casa sanguinária, porque matou os gibeonitas. Então, chamou o rei os gibeonitas e lhes falou (ora os gibeonitas não eram dos filhos de Israel, mas do resto dos amorreus, e os filhos de Israel lhes tinham jurado, porém Saul procurou feri-los no seu zelo pelos filhos de Israel e de Judá). Disse, pois, Davi aos gibeonitas: Que quereis que eu vos faça? E que satisfação vos darei, para que abençoeis a herança do Senhor? Então, os gibeonitas lhe disseram: Não é por prata nem ouro que temos questão com Saul e com sua casa; nem tampouco pretendemos matar pessoa alguma em Israel. E disse ele: Que é, pois, que quereis que vos faça? E disseram ao rei: Quanto ao homem que nos destruiu e procurou que fôssemos assolados, sem que pudéssemos subsistir em termo algum de Israel, de seus filhos se nos deem sete homens, para que os enforquemos ao Senhor, em Gibeá de Saul, o eleito do Senhor. E disse o rei: Eu os darei. Porém o rei poupou a Mefibosete, filho de Jônatas, filho de Saul, por causa do juramento do Senhor, que entre eles houvera, entre Davi e Jônatas, filho de Saul. Porém tomou o rei os dois filhos de Rispa, filha de Aiá, que tinha tido de Saul, a saber, a Armoni e a Mefibosete, como também os cinco filhos da irmã de Mical, filha de Saul, que tivera de Adriel, filho de Barzilai, meolatita. E os entregou na mão dos gibeonitas, os quais os enforcaram no monte, perante o Senhor; e caíram estes sete juntamente; e foram mortos nos dias da sega, nos dias primeiros, no princípio da sega das cevadas.
Depois de algum tempo, a fome e a seca acabaram. Que história mais linda! O que é interessante nela é que ela deixa claro algo que com frequência esquecemos: o funcionamento da expiação. Aqui o Rei Davi está expiando algo, oferecendo propiciação aos gibeonitas. Em outras palavras, os gibeonitas têm o direito de exigir vingança, algo lhes é devido, e Davi lhes oferece esse algo. São Paulo parece conhecer essa história, já que ele diz em Romanos (12): “Que diremos, pois, diante destas coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós? Aquele que nem mesmo a seu próprio Filho poupou, antes, o entregou por todos nós, como nos não dará também com ele todas as coisas?” Estão vendo para onde São Paulo aponta aqui? São Paulo está dizendo que Deus, ao contrário do do Rei Davi, não procurou outra pessoa como sacrifício substitutivo para nos aplacar, mas ofereceu seu próprio filho (o que, para um monoteísta como São Paulo, significa ele mesmo) para ser a expiação, oferecendo a propiciação.
No texto de Samuel, quem está propiciando quem? O Rei Davi está propiciando os gibeonitas usando os filhos de Saul. Deus está propiciando a nós. Em outras palavras, quem é a divindade zangada da história? Nós. É esse o propósito da adunação. Nós somos a divindade zangada. Deus estava ocupando o espaço de nossa vítima para nos mostrar que nunca precisaremos fazer isso de novo. Isso vira de ponta cabeça o entendimento asteca da adunação. Aliás, vira de ponta cabeça aquilo que passava pela nossa teoria da adunação pela substituição penal, que sempre pressupõe que somos nós que estamos satisfazendo Deus, que Deus precisa ser satisfeito, que há vingança em Deus. No entanto, é bem claro no Novo Testamento que aquilo que realmente empolgava Paulo era que, a partir da autodoação e do sangue saído de Jesus, era claro que essa era a revelação de quem Deus era: Deus era inteiramente desprovido de vingança, inteiramente desprovido de truques substitutivos; e era ele que estava doando a si mesmo inteiramente, sem ambivalência e sem ambiguidade, para nós, em nossadireção, a fim de nos “libertar dos nossos pecados” — sendo “nossos pecados” o nosso modo de estarmos atados uns aos outros na morte, na vingança, na violência, e naquilo que se costuma chamar de “ira”.
Agora, o que é particularmente difícil para nós, e o motivo pelo qual quero nos lembrar de que essa é uma liturgia e não uma teoria, é que o modo como vivemos isso como cristãos é recordando que o único sacrifício verdadeiro — isto é, o lugar em que Deus entregou a si mesmo por nós, em nosso meio, como nossa vítima — foi feito. Acabou! O sistema sacrificial como um todo foi derrubado. O Santo dos Santos foi aberto para sempre.
Representamos isso em nossa imaginação teológica pela doutrina da Ascensão. Lembrem do que acontece no começo dos Atos dos Apóstolos. Jesus está com os apóstolos numa colina perto de Jerusalém, e então é levado para os céus. Ele os abençoa no caminho — isto é, aqui temos o sumo sacerdote. Eles ficam olhando para cima; e há alguns anjos — que são, é claro, nossos velhos amigos, os querubins do Santo dos Santos, que agora passou a estar por toda parte — dizendo: “Por que vocês estão aí olhando para o céu? Fiquem na espera, que vocês serão empoderados desde o alto.” O que temos aqui é Jesus indo “sentar-se à direita do Pai”: o lugar do sacerdote — o Verbo, o Criador —, tendo o sacrifício sido cumprido. É sob isso que nós vivemos. E o modo como vivemos isso liturgicamente é nossa participação na Eucaristia.
O propósito da Eucaristia não é nós tentarmos fazer Jesus descer até aqui, mas obedecermos a instrução de Jesus para invocá-lo, para fazer isso em memória dele, de modo que nos vejamos transportados para a participação no “banquete celeste”, o lugar onde o Cordeiro está imolado, como na visão descrita no Livro do Apocalipse. Essa é uma visão do Santo dos Santos; essa é uma visão do Santo dos Santos agora aberto e fluindo em todas as direções. É o único sacrifício verdadeiro, que foi feito. Isso não significa “feito e resolvido”. Significa que o Cordeiro vitorioso está aqui; que seu sangue flui para o exterior; a vítima, a vítima que perdoa, está presente. E temos acesso para participar nessa adunação, que foi obtida por ter sido disponibilizada para nós na Eucaristia. Para nós, a Eucaristia é o sumo sacerdote saindo do Santo dos Santos, dando-nos seu corpo e seu sangue, como nosso modo de ser um sacerdócio vivo e um templo vivo no mundo.
Agora, se essa imagem é verdadeira, então parece que aquilo que seria a essência da nossa vida Eucarística é que somos um povo que está sendo transformado no novo templo ao receber o corpo e o sangue da vítima que doa a si mesma, que já é vitoriosa. Estamos sendo transformados no novo templo que é capaz de participar da vida de Deus, que vem a nós aqui e agora. É disso que trata a doutrina da transubstanciação. Ela significa: isto não é apenas uma ceia memorial; é, na verdade, o banquete celeste, em que outra pessoa é o protagonista e somos chamados a sair de nós mesmos para participar dele. Estamos sendo chamados “através do Véu” para a participação. Os sinais nos são dados; é por isso que o corpo e o sangue não são algo que esconde a divindade, mas que a manifestam. São sinais, dirigidos a nós, do que Deus está efetivamente fazendo por nós.
Agora, tudo isso está acontecendo no céu. É esse o propósito da doutrina da Ascensão: com o Santo dos Santos pleno, nós começamos a receber tudo o que flui dele.
Isso tem consequências éticas. E estas são tremendamente importantes para o nosso entendimento, porque, se você tem uma teoria da adunação — algo que é apreendido —, você tem algo que as pessoas podem “entender corretamente”, e assim fazer parte do grupo dos mocinhos. “Somos aqueles que foram cobertos pelo sangue; somos aqueles que estão bem, aqueles que são bons; e também existem os que não são.” Em outras palavras, em vez de vivenciarmos a adunação, somos pessoas que se apegam à ideia da adunação. Porém, todo o propósito do entendimento cristão é que não deveríamos ter muita pressa para nos identificarmos com os mocinhos. Pelo contrário, somos pessoas que vivenciam constantemente “EU SOU” — isto é, Deus — vindo na nossa direção, oferecendo-nos perdão como nossa vítima. E estamos aprendendo a olharmos uns para os outros como pessoas que estão dizendo: “Ah, então era nisso que eu estava metido!” Isso significa que nós somos o “outro” nesse pacote; que nós somos o “outro” que está sendo transformado num “nós”, na medida em que encontramos nossa semelhança com nosso irmão e com nossa irmã, dos dois lados de nós. Isso e não “somos aqueles que, porque apreendemos a teoria, nos tornamos parte de ‘EU SOU’, e portanto o ‘outro’ é algum ‘eles’.” Se você está vivenciando a adunação, isso significa que você está constantemente no processo de ser abordando por alguém que te perdoa. Esse, me parece, é o desafio que temos em termos de imaginação quando se trata de imaginar e de reimaginar a adunação.
O difícil para nós é ficar nesse processo de ser abordado por alguém. Como estamos acostumados com a teoria, queremos que alguém diga: “É assim que as coisas são. Entenda a teoria direito. Agora ponha em prática.” Isso imagina que fazemos parte de um universo estável que podemos controlar. Porém, se o verdadeiro centro do nosso universo é um “EU SOU” que vem na nossa direção como nossa vítima que nos perdoa, então não estamos num lugar estável. Estamos no lugar de sermos desestabilizados, porque estamos sendo abordados por alguém totalmente fora das nossas estruturas de vingança e de ordem.
Imagine como é ser abordado pela sua vítima, que te perdoa. Na verdade, é bem difícil ficar imaginando ser abordado por nossa vítima que nos perdoa! Como é efetivamente vivenciar ser perdoado? Tendemos a tentar resolver isso dizendo: “Ah, não é ser perdoado que importa. É perdoar: eu tenho de perdoar!” Assim, nos forçamos até chegarmos a um estado de estupor moral para “perdoar aquele canalha!”. Aí as coisas ficam muito, muito complicadas. O entendimento cristão é na verdade bem o oposto: é porque estamos vivenciando ser perdoados que conseguimos perdoar; e precisamos perdoar a fim de continuar vivenciando sermos perdoados. Mas lembre: é porque somos abordados por nossa vítima que começamos a ser reparados. Ou, no linguajar de Paulo: “estando nós ainda mortos em nossos delitos, nos vivificou juntamente com Cristo”. Alguém estava abordando você até mesmo quando você não notava que havia um problema, e assim você começa a descobrir: “Ah, então era nisso que eu estava metido!”.
Agora, para nós, isso é vital: isso significa que, nessa imagem, o “pecado”, em vez de ser um bloqueio com o qual temos de lidar, é descoberto ao ser perdoado. A definição de pecado passa a ser: aquilo que pode ser perdoado.
E o processo de ser perdoado parece o romper do coração, ou “contrição” (do latim cor triturare). Na vida de uma pessoa, o perdão assume a aparência de um “romper do coração”; e o propósito de ser perdoado — a razão pela qual a vítima que perdoa emergiu do Santo dos Santos oferecendo a si mesma como substituta para todos os nossos modos de afastar o sermos perdoados, de tentar manter a ordem — a razão pela qual ela fez isso é que somos pequenos demais, vivemos numa versão atravancada da criação, e nos aferramos a essa versão atravancada da criação porque temos medo da morte. O que Jesus estava fazendo era abrir a visão do Criador, que desconhece a morte, para que possamos viver como se a morte não existisse. Em outras palavras, estamos ganhando um coração maior. É nisso que consiste ser perdoado. Não é “preciso resolver esse problema moral que você têm aí”. É , “a menos que eu vá até vocês, e capacite vocês a vivenciar um rompimento do coração, vocês vão viver num universo pequeno demais, vocês não vão aproveitar a vida e ser livres. Como é que eu faço para chegar até vocês?”
Bem, o único jeito é vir entre vocês como a sua vítima. Esse é o unico lugar em que vocês podem ser desmantelados. É esse o lugar do qual vocês têm tanto medo que vocês farão qualquer coisa para ficar longe dele. Assim, se eu puder ocupar esse lugar, e voltar para vocês e dizer: “Pois é, vocês fizeram isso comigo. Mas não se preocupem! Não vim aqui acusar vocês. Estou aqui para brincar com vocês! Para criar um espaço maior para vocês. E para que vocês também tornem esse lugar maior comigo.” E claro que o modo como Jesus patenteou isso foi preparando a última ceia, em que ele se entregava por nós para que nós nos tornássemos ele.
É um projeto arriscado. É essa a ideia! É por isso que quero juntar as noções de criação e de adunação, recuperando a dinâmica sacerdotal. É esse o projeto arriscado de Deus dizendo: “Não sabemos como isso vai terminar. Mas quero que vocês sejam co-participantes comigo, do lado de dentro do projeto criativo. E isso significa que vou correr o risco de que isso vá parar em lugares que eu não imaginava porque quero tornar-me um de vocês como vocês, para que vocês possam se tornar eu como eu.” Temos isso no Evangelho de João: “Em verdade, em verdade vos digo: Aquele que crê em mim, esse também fará as obras que eu faço, e as fará maiores do que estas; porque eu vou para o Pai” (13). E pensamos: “Ah, Jesus está sendo modesto quanto aos seus milagres.” Não, ele está sendo perfeitamente direto, antropologicamente. Na medida em que, ao receber esse sacrifício, aprendemos a sair de um mundo que sacrifica, que tenta gerir as coisas de maneira protetiva, por cima “deles”, contra “eles”, nessa mesma medida nos veremos — como já nos vimos! — fazendo coisas maiores do que ele sequer conseguia imaginar. É isso que o desabrochar da criação traz.
O desabrochar da criação opera entre nós através do Espírito que é o advogado de defesa, que portanto recusa a tendência acusatória. Enquanto acusamos, enquanto vivemos numa teoria da conspiração, nunca podemos descobrir o que é, por isso nunca aprendemos a assumir responsabilidade por isso. Nunca aprendemos a habitar a criação com plenitude.
Estão vendo que há um movimento imenso na adunação? O movimento é da criação para nós, que vamos nos tornando participantes da criação ao sermos empoderados para viver como se a morte não existisse. Esse é o padrão sacerdotal da adunação; e é esse padrão sacerdotal que Jesus teve a genialidade de combinar com o ético, juntando a antiga fórmula litúrgica, as profecias, as esperanças de que viria o ungido, o verdadeiro sumo sacerdote que chegaria para criar um novo templo, o verdadeiro pastor das ovelhas que chegaria para criar um novo templo — cumprindo estas, e revelando o que elas significavam em termos antropológicos e éticos: a superação da nossa tendência a sacrificarmos uns aos outros para sobrevivermos. É esse o mundo que, graças a ele, habitamos.
Agora vocês entendem por que eu disse que queria oferecer uma explicação muito mais conservadora do que aquela que é permitida pela teoria da adunação? O que recebemos é um sinal de algo que aconteceu e que nos foi dado. O que é difícil para nós não é entender a teoria, mas começar a tentar imaginar o amor que está por trás disso. Por que, afinal, alguém se daria ao trabalho de fazer algo assim por nós? É essa a pergunta de São Paulo. “Que diremos, pois, diante destas coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós? Aquele que nem mesmo a seu próprio Filho poupou, antes, o entregou por todos nós, como nos não dará também com ele todas as coisas?” (14). São Paulo está com dificuldades para encontrar palavras para descrever a generosidade divina. É isso que é realmente difícil para nós imaginar. Conseguimos imaginar a retaliação, conseguimos imaginar a proteção; mas achamos tremendamente difícil imaginar alguém que desprezávamos, e que nos dava uma tremenda satisfação por não ser como esse alguém — a quem antes expulsaríamos para que nós pudéssemos manter nossa posição — achamos tremendamente difícil imaginar essa pessoa generosamente irrompendo em nosso meio de modo a nos libertar para permitir que algo inteiramente novo se abra para nós. Porém, ser empoderado para imaginar toda essa generosidade é o sentido da adunação; e é isso que se pede que vivamos liturgicamente como cristãos.
(1) James Alison, On Being Liked (Londres: DLT, 2003), caps. 2, 3, 4. Estes capítulos estão disponíveis em espanhol em Para la libertad nos ha liberado.
(2) Margaret Barker, The Great High Priest: The Temple Roots of Christian Liturgy (Londres: Continuum, 2004).
(3) Margaret Barker, The Revelation of Jesus Christ (Edimburgo: T&T Clark, 2000).
(4) Law in the New Testament, de Duncan Derrett (Londres: DLT, 1970) é um clássico, e seus vários volumes de Studies in the New Testament (Leiden: Brill) são preciosidades para os que têm a sorte de ter acesso a eles.
(5) Em mais obras do que consigo mencionar aqui. Discovering Girard (Londres: DLT, 2004) é, segundo o próprio Girard, a melhor introdução a seu pensamento.
(6) Lucas 4, 16ss.
(7) Percebe-se que a tradição cristã nunca perdeu isso de vista na Capella degli Scrovegni (1303-6), pintada por Giotto, em que a túnica entregue é muito claramente sacerdotal.
(8) Para uma leitura particularmente bela disto, ver “Between the Cherubim: The Empty Tomb and the Empty Throne”, de Rowan Williams (On Christian Theology, Oxford: Blackwell, 2000), 183-196.
(9) Sirac, 50 nos oferece um maravilhoso relato do Segundo Templo em que Simeão, o Sumo Sacerdote, realiza essa liturgia com muitos dos antigos elementos facilmente reconhecíveis.
(10) Algumas cidades gregas antigas mantinham um estoque exatamente dessas vítimas feitas sob medida para o dia em que seu sacrifício fosse “necessário”.
(11) 2 Samuel 21, 1-9.
(12) Romanos 8, 31-32.
(13) João 14, 12
(14) Romanos 8, 31-32.