Viver o Magnificat

Palestra dada na conferência promovida pela Affirming Catholicism em Durham, Inglaterra, 7 a 10 de setembro de 2006

Tradução do texto Living the Magnificat
realizado por Pedro Sette-Câmara

Esta noite serei um pouco travesso. Como estamos nas primeiras Vésperas da Festa do Aniversário de Nossa Senhora, achei que poderia aproveitar o fato de que, embora vocês tenham se reunido aqui principalmente para pensar em questões éticas, como indicado pelo subtítulo do congresso — “O grito de Deus por justiça, por misericórdia, e por humildade” — vocês escolheram fazer isso por meio das palavras de Nossa Senhora. Pois bem, sem a graça, a Ética tende ao moralismo; e o formato, o padrão da graça que informa a ética é uma questão muito mais sutil, e muito mais difícil de formular, do que normalmente consideramos. Assim, tentarei oferecer algo que sirva como notas preliminares a respeito do formato da graça que nos é revelada pela presença de Nossa Senhora.

Ao longo dos últimos anos venho dando, em diferentes lugares, um curso de catequese adulta, uma espécie de introdução à fé cristã. Com o passar do tempo, fui percebendo cada vez mais o quanto a importância da presença de Nossa Senhora na vida da fé e na vida da Igreja era maior do que eu pensava e do que parece ser corrente. Falo da presença dela não como um “plus a mais”, como uma boa metáfora para falar corporalmente da Igreja, ou como uma peça obrigatória de piedade bolorenta, mas como um agente ativo agora mesmo no drama vivido da salvação, em meio ao qual nos tornamos Igreja. E um agente ativo agora mesmo com um papel muito maior e mais sofisticado do que se permitiu nestas ilhas por muitos séculos. Alguém a quem temos acesso direto, alguém com quem podemos falar, e de quem recebemos abundantemente. Em outras palavras, quero sugerir, como parte da minha introdução à fé, que, se em nosso entusiasmo e em nossa alegria por termos sido convidados a entrar, e por sermos incentivados a brincar dentro desse drama extraordinariamente seguro que é o cristianismo, ninguém presume que sejamos idólatras quando se trata de Nossa Senhora, então deve haver algo de errado com o modo como estamos recebendo e vivendo a fé católica.

Permitam-me desenvolver com vocês uma analogia que, com toda a sua inexatidão, esclarecerá — assim espero — o que quero dizer. Meus amigos sabem, para sua infelicidade, que faço parte de um grupo pequeno mas totalmente insano de devotos conhecido como malucos por Rossini. Por algum motivo, a música do gênio de Pesaro nos comove, enche nossa alma, e executa deliciosas piruetas em nós como nenhuma outra música. Bem, no caso dessa analogia, por favor presumam que Rossini é Deus. E que vocês estão assistindo a uma montagem de O barbeiro de Sevilha, porque é muito difícil que encenem Mathilde di Shabran. Não importa a ópera: vocês foram ver a criação de Deus. Nessa montagem do Barbeiro, o papel de Rosina será cantado por uma soprano incrível, a quem chamaremos Maria. Agora, assim que a música começa, Rossini está por toda parte, permeando tudo, sua música preenchendo os espaços e os interstícios com energia criativa e compasso. Porém, Rossini não é visível. É a música que o denuncia, e é a música que envolve você. À medida que a ópera vai progredindo, personagens diferentes aparecem, entre os quais Rosina, cantada por Maria. Numa performance realmente boa, você terá a impressão de que a música que ela canta está passando através dela, de que ela está realmente encarnando a pessoa que a música evoca. Isto é: quanto mais ela é ela mesma, quanto mais indomável, mais efervescente, mais ousada, mais divertida, mais inteligente, mais a música de Rossini terá feito aquilo que pretendia fazer.

E, ao chegar ao fim da ópera, o público provavelmente vai ficar ensandecido com ela, gritando, aplaudindo, e batendo o pé. Agora imagine algum azedo comentarista dizendo: “Está tudo errado. O público devia aplaudir Rossini, gritar para Rossini, não para ela. Aliás, ao adorá-la desse jeito, o público acaba diminuindo os elogios devidos ao compositor.” Espero que o empolgado público tivesse tido o bom senso de responder: “Mas isso não faz o menor sentido: o que ela fez foi o que Rossini criou, e todo elogio dela acaba indo para ele. A música de Rossini não teria ficado melhor se ela tivesse ficado calada durante todas as partes em que o personagem dela canta, de modo que tivéssemos ouvido apenas Rossini. Na verdade, foi só porque ela cantou Rossini de maneira tão exultante que conseguimos ouvir o que Rossini queria que ouvíssemos. A performance dela foi Rossini em três dimensões, uma realização de suas possibilidades criativas.”

Bem, no meu entendimento, é isso que significa o primeiro verso do “Magnificat”: “Minha alma engrandece o Senhor.” Ele quer dizer exatamente o que diz: Deus é ampliado pela alma de Nossa Senhora, fica maior por causa dela. O formato vivido de sua vida corpórea ao longo do tempo vai efetivamente tornar Deus mais Deus do que antes, exatamente como, eu sugeriria, uma heroína operática realmente superlativa fará com que Rossini seja mais Rossini depois de sua atuação. E Rossini ficaria alegre por que sua heroína fez com que ele fosse mais do que era antes: foi por isso que ele trabalhou para oferecer matéria prima a partir da qual a heroína criaria o papel. Assim, podemos imaginar Deus se alegrando ao ser espontaneamente engrandecido na vida de Nossa Senhora. E podemos talvez imaginar também a tristeza dos anjos com aqueles que acham que o ser de Deus é de algum modo ameaçado pela atuação realmente superlativa de alguém que sob nenhum aspecto está em rivalidade com Deus.

O segundo verso do “Magnificat” ajuda a completar algo a respeito do formato do papel que Nossa Senhora está desempenhando. Seu espírito dá gritos de alegria diante de Deus, seu salvador. E ἀγαλλιάω, palavra que entra no grego vinda de fontes bíblicas, realmente tem algo de uma exultação tosca e desatada que, graças ao nosso temperamento peculiar de povos do norte, excluímos do assunto sério e adulto conhecido como religião. Porém, isso é algo que eu gostaria de enfatizar. A presença de Nossa Senhora na família da fé está imensamente associada com a alegria, com o júbilo, com o borbulhamento. Simplesmente pense em quantos dos hinos associados a Nossa Senhora começam com “Gaude!” — “Alegrai-vos!” E em como suas festas são todas ocasiões de alegria. Como é sórdido que, neste país, tenhamos tido há pouco um Feriado Bancário de Agosto e não um feriado da Ascensão. E no quanto fica empobrecido nosso entendimento daquilo que recebemos quando o júbilo mariano não pode pulsar como o pano de fundo constante da nossa fé. 

Assim, o que eu gostaria de fazer agora com vocês é começar a desenvolver minha imagem operática de modo a torná-la mais tridimensional. Isso porque existe algo muito especial nessa encenação específica de O barbeiro de Sevilha que estamos discutindo. Afinal, nessa montagem, Rossini não apenas fornece a música, estando portanto na ópera inteira, mas ainda faz ele mesmo o papel do Conde de Almaviva. Assim, além de estar por toda parte, ele também está presente num sentido estritamente limitado. Gioacchino sobe ao palco para cantar em pessoa esse exigente papel de tenor. Como nota histórica, devo indicar que Rossini tinha voz de tenor, e às usava-a para cantar em público. Que ele pareça ter tido uma percepção mais elevada do valor musical dela do que seus contemporâneos tiveram é algo que nós, cantores desconhecidos do chuveiro operático, entendemos bem.

Rossini, então, está por toda parte, como indicado pela música, e está presente num sentido muito particular no papel do Conde de Almaviva, o que decerto será um conforto para nossos azedos comentadores! Agora eles podem murmurar que Maria, que faz o papel de Rosina, deveria receber aplausos apenas mornos, e que todo o aplauso, no fim, deve ficar com Rossini, tanto por sua presença imediata no papel de Almaviva quanto por sua presença de fundo, tendo escrito a ópera inteira. Mais uma vez, espero que vocês percebam que isso não faz o menor sentido. Almaviva terá contribuído para sugerir o ser do personagem de Rosina ao cantar com ela, ou contra ela, como determina a cena, mas produzindo uma tensão e aquela sensação de que os artistas estão um brilhando graças ao outro, e se tornando mais do que eles mesmos — que é o que define uma apresentação realmente grandiosa. Além disso, é claro, não é só Almaviva que teria brilhado graças a Rosina, mas também o contrário: uma Rosina que esteja fulgurante em seu papel levará um Almaviva a oferecer uma versão ainda mais deslumbrante do seu papel. E o público vai enlouquecer no final, com o tanto que gosta de cada um dos personagens, e com o tanto que eles os agradaram, mas certamente não ocorrerá ao público que ele deveria reduzir seu entusiasmo pelos outros personagens apenas porque Rossini estava no palco e não no pódio do maestro, ou nos bastidores.

Bem, até aqui, nada de mais. Em princípio, louvar uma criatura não traz nada que diminua a honra devida ao criador quando essa criatura está sendo elogiada por sua excelência particular ao viver sua criaturidade. E quando, como na Encarnação de Nosso Senhor e Salvador, o Criador decide agir no papel de protagonista principal num drama encenado integralmente dentro dos limites da criaturidade, o papel das criaturas interagentes não fica mais opaco, mas sim, ao menos potencialmente, mais magnífico. A presença do compositor como personagem no palco não rouba a cena dos outros cantores, mas os deixa mais brilhantes.

Bem, agora vamos ainda mais longe na minha bizarra heresia rossiniana (que não deve ser confundida com os “erros” recentemente reabilitados de Rosmini). Este é o momento em que enfim passamos do teatro para a vida, ou seja, onde Rossini, em vez de ser apenas um compositor operístico, torna-se Deus, por toda parte, e nós, em vez de sermos espectadores numa montagem teatral, tornamo-nos pessoas convidadas a nos tornarmos participantes vivos na criação definitiva da obra-prima definitiva que se chama não ópera, mas “Opus Dei” (peço desculpas àqueles que estão tentando patentear para seu próprio grupo a montagem inteira). O que isso significa é que, ao aceitarmos o convite, nos vemos interagindo cada vez mais com os membros do elenco original ao encenar o espetáculo e ao nos empenharmos num efeito criativo multiplicador. Por causa disso, vale a pena pensar um pouco no nosso relacionamento com alguns desses membros do elenco original.

Claro que Rossini cantando o papel do Conde foi inesquecível, e claro que sua performance provavelmente será definitiva. Isso significa que todos os tenores líricos subsequentes que fazem esse papel deverão estudar essa performance para ver como ele deve ser feito. Mas Rossini não foi definitivo no sentido de que ninguém nunca mais pode cantar esse papel porque não seria ele. Pelo contrário, foi definitivo no sentido de que estabeleceu os parâmetros que possibilitaram que muitas, muitas outras pessoas fossem ele. Ou, como disse Outra Pessoa:

Em verdade, em verdade vos digo: aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço, e fará ainda maiores do que estas, porque vou para junto do Pai. E tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, vo-lo farei, para que o Pai seja glorificado no Filho. Qualquer coisa que me pedirdes, em meu nome, vo-lo farei. (João 14, 12-14)

Outra vez, como aparte histórico, Rossini não tinha nada de controlador na sua música: primeiro ele ouvia os cantores que tinha à sua disposição, e depois efetivamente escrevia as árias para eles, a fim de mostrar o melhor das vozes deles, e sua música dá muito espaço para que os cantores se expressem como quiserem. Rossini teria sido o primeiro a reconhecer que existem qualidades diferentes da voz de tenor do que aquela de que sua fisionomia o dotou, e que cada cantor deveria ver o que podia fazer com o papel partindo daquilo que já tinha. A dinâmica subjacente dessa apresentação consiste em empoderar os outros para uma imitação flexível. Exatamente como no caso da apresentação cujo Protagonista é o Verbo Encarnado.

E claro que todos conhecemos o modo como devemos aprender a fazer o papel de Rosina numa imitação flexível do modo como Maria o cantou da primeira vez. Na verdade, tendemos a receber até demais lembretes sentenciosos de que o papel de Maria é o mesmo que o nosso, de que nós também temos de dar nosso consentimento ao Anjo, e trazer o Verbo ao mundo. De um lado, tendemos a insistir na natureza única e sagrada da performance do compositor quando subiu ao palco como protagonista, de um modo que obscurece o sentido de ele fazer o papel para possibilitar que criemos performances mais maravilhosas e mais livres. E, por outro lado, em anos mais recentes nos ensinaram a insistir na natureza não-única e não-sagrada do papel da cantora principal, e em como todas as partes importantes do papel dela são aqueles que fazemos mesmo assim, de modo que não precisamos realmente interagir com ela. Por causa disso, tendemos a minimizar as partes do papel que ela executou pela primeira vez, que ela criou sob circunstâncias muito específicas, e que, tendo sido criados por ela, estão marcados por ela para sempre.

Por favor, tenha em mente que essas tendências são apenas o lado oculto da mesma qualidade de pensamento rivalista.  É como se ajudar a tornar um mais único e o outro mais comum pudesse realmente ajudar-nos a entender a benevolência completamente não-rivalista que fez parte da escolha do compositor de entrar no drama como personagem antes de tudo. Afinal, foi ele que optou por estar no mesmo nível que todos os outros personagens, decidindo não ser mais único e mais maravilhoso do que eles, mas  interagindo com eles de modo que todos pudessem vir a participar de sua maravilha única de maneiras inteiramente próprias a eles. Era a encenação inteira que ele queria imbuir de seu espírito criativo.

A esta altura, para nosso alívio, eu gostaria de deixar Rossini voltar para o céu, que é seu lugar, para que ele possa continuar impressionando os anjos com os modos diferentes de fazê-los cantar coisas diferentes, em ritmos diferentes, todos ao mesmo tempo. E eu gostaria de passar da minha analogia operática para seu analogado, o qual, é claro, é a encenação viva conhecida como “Nossa Salvação”.

Quero começar do fim, que é obviamente de onde sempre começamos. Só podemos começar do fim porque só podemos contar histórias cujo fim já sabemos. Nós as recontamos para a frente, mas as compomos para trás. Se não sabemos o fim, então nem está claro qual história estamos começando a contar, e, portanto, nem sequer se temos mesmo uma história. O fim dessa história, o drama da nossa salvação, é a Assunção aos Céus de Nossa Senhora e sua Coroação. Isso é, digamos, a declaração máxima da vitória de Deus em Cristo, e um sinal do formato dessa vitória. Claro que a vitória foi obtida, a batalha acabou, no momento em que o céu se tornou para sempre uma história humana quando Cristo ascendeu para a direita de Deus, tomando uma natureza humana, isto é, uma história humana vivida, como paradigma do céu. Porém, a plenitude do formato dessa vitória só se torna realmente clara com a Assunção aos Céus de Nossa Senhora e sua Coroação. É aí que fica deveras luminoso não apenas que fomos salvos, mas o que é que foi salvo, e que cara tem ser salvo.

E essa cara é a seguinte: a criação renovada e absolutamente viva. Havia alguém que era inteiramente parte da criação, e ela foi capaz de participar do nascimento da nova criação de tal modo que não houve nela oposição a isso, resistência nenhuma a produzir a nova criação, e, por causa disso, há uma continuidade ininterrupta entre criação e nova criação. E isso significa que a criação é boa! Tudo que é humano é a princípio bom, e deve ser levado a bom termo. O todo da vida corporal de Maria, da Imaculada Concepção até a Dormição e a Assunção foi boa. O que significa que, a princípio, nossa vida também é. Não há nada intrinsecamente mau em nenhuma parte do processo da vida humana, da reprodução plenamente sexual com que os pais de Maria conceberam-na, até o momento em que sua finitude biológica chegou a seu devido fim em sua dormição ou morte. E assim não há nada intrinsecamente mau em parte nenhuma do nosso processo de vida humana. Mesmo que, em nosso caso as pressões e as dificuldades normais do crescimento e do aprendizado se misturem com ficarmos assustados e assim nos aferrarmos a uma identidade pequena demais, e resistamos a ser levados para a plenitude da criação. Apenas nisso, em ficarmos presos na resistência a sermos levados à plenitude da criação, somos diferentes de Maria.

A diferença é entre aqueles para os quais nosso envolvimento em nosso ser criados tem de nos alcançar primeiro através de sermos perdoados, de modo que há uma sensação de ruptura entre quem pensávamos ser, aonde tentávamos ir, e quem agora nos vemos passando a ser, e a pessoa para quem essa ruptura não aconteceu. A vida dela foi o movimento contínuo, sem dúvida estirado e tenso, na direção de ser criada e passar a partilhar da vida do criador sem nenhuma resistência ou ruptura. Isso não significa que ela não cometeu erros, não significa que ela não teve de aprender, que ela achou que as coisas eram difíceis de entender, que ela talvez tenha sido impetuosa, ou que tenha tido qualquer outro traço de personalidade. Mas significa que ela, sem dúvida sem comparação nenhuma com outra pessoa, estava plenamente envolvida na aventura de receber ser quem ela se tornaria.

Assim, desde o ponto de vista do fim da história, a Assunção, vemos não apenas que alguém fez algo por nós, como claramente fez — é esse o papel de Jesus. Vemos o começo do formato vivo e ativo de como é ter esse algo feito por nós. Mas não só. Que a história tenha chegado ao fim não significa que tenha acabado de vez, que seus habitantes tenham silenciosamente se retirado para algum resort praiano celestial. Pelo contrário, significa que, exatamente do mesmo modo como Jesus, o cordeiro que se entrega, está vivo no altar no céu, sua vitória selada para sempre, e seu entregar-se vivificado para nós constantemente e dado a nós, também aqueles que partilham em sua vida ressurrecta, os santos, e, primeira entre eles, Nossa Senhora, não apenas fazem parte de uma história que agora acabou, mas partilham de toda a criatividade viva e empoderadora de histórias da vida da ressurreição disponibilizada para nós agora.

Ou ainda: não é que haja gente sortuda que está simplesmente ali do outro lado da grande divisão, e que nós estejamos aqui, presos deste lado, tendo, a cada geração, as mesmas escolhas trágicas e heroicas a fazer, decisões para cumprir e daí por diante, que talvez, talvez permitam que passemos para o outro lado, a respeito do qual não podemos saber nada. O ponto essencial de a vida da ressurreição já ter sido vivida por pessoas reais com nomes reais e histórias de vida reais, uma vida de ressurreição que para nós é moldada no formado da imagem da própria criação na Virgem Assunta, é que isso significa que a grande divisão não é tão grande, que o outro lado está exatamente agora se curvando na nossa direção, e tende até a interpenetrar o nosso próprio lado, de modo que essa não é uma aventura de heroísmo trágico, mas uma história muito mais segura do que normalmente ousamos acreditar. Afinal, uma Salvação que não viesse com um sentido expansivo de segurança não valeria grande coisa.

Agora, para que vocês não pensem que, ao apresentar essa versão altamente condensada das doutrinas da Assunção e da Imaculada Conceição, estou meramente falando de bonitos símbolos doutrinais, gostaria de voltar do fim da história para aquele ponto médio na história real vivida em que podemos começar a contá-la. E digo ponto médio porque essa história é, como falei, contada a partir do fim. Porém, é uma história que teve muitos ensaios gerais antes de enfim ser encenada de maneira definitiva e triunfante por Maria de Nazaré. São Lucas nos dá pistas desses ensaios gerais em seu uso de palavras gregas que refletem tentativas anteriores da encenação que se tornou definitiva em Maria. Assim, o Espírito de Deus irá cobri-la com sua sombra — ἐπισκιάσει (Lucas 1, 35). Os ensaios gerais para isso incluem a Arca da Aliança sendo coberta pelos querubins — συσκιάζοντες (Êxodo 25, 200), e a Presença cobrindo o Tabernáculo — ἐπεσκίαζεν (Êxodo 40, 35) — no livro do Êxodo. Porém, esses eram os ensaios gerais, e, como todos os ensaios gerais, careciam de ajustes finos. Afinal, o que aprendemos em São Lucas é que a Arca e o Tabernáculo eram figuras de Maria. E não apenas em Lucas: também no livro do Apocalipse a Arca é associada com a mulher que está prestes a parir (Apocalipse 11, 19; 12, 1). E isso é muito mais significativo do que parece, porque toda a questão do Santo dos Santos no o centro do Templo, e efetivamente do Tabernáculo de tempos anteriores, era que era por meio do Santíssimo que Deus e suas hostes de anjos faziam criação. Considerava-se que o Santíssimo estava fora da matéria criada, e que o véu que o cercava era o começo da existência material. A partir do véu, você encontrava no Templo os símbolos dos dias da criação: as luzes, as águas, os animais, e daí por diante.

Um momento-chave no ano litúrgico seria o Dia do Perdão, quando o Sumo Sacerdote, visto como encarnação temporária da divindade, e portanto apto a ser adorado como YHWH, passaria pelo véu, assim simbolizando Deus vindo em meio à criação para fazer o sacrifício por seu povo. Ao passar pelo véu, ele trajaria uma túnica inconsútil feita do mesmo material do véu, assim tornando materialmente visível Aquele que em princípio é Invisível. Vejam, São Lucas está mais do que sugerindo que todos esses ritos eram ensaios gerais para a Coisa Mesma. E a Coisa Mesma assumiu a forma do Grande Sumo Sacerdote, YHWH em pessoa, investindo-se da carne para entrar na materialidade e então ir a Jerusalém para executar o sacrifício real. Essas são as imagens de fundo, digamos, do que está acontecendo na Anunciação. Maria será o verdadeiro Santíssimo, a verdadeira Arca da Aliança, o verdadeiro Tabernáculo no qual Moisés não podia entrar. E, como é o verdadeiro sumo sacerdote, YHWH em pessoa, o Criador, que vai emergir dela, homem nenhum precisa primeiro entrar nela para sair com roupas diferentes, como teria acontecido com os Sumos Sacerdotes no Templo.

Enfatizo isso porque acho muito importante, na nossa época pós-freudiana, enfatizar que uma Virgem conceber não tem nada a ver como minimizar o sexo — fato ressaltado pela doutrina da Imaculada Conceição, que deixa claro que não há nada intrinsecamente problemático com a geração sexual. A concepção Virginal tem tudo a ver com a Criação a partir do nada. E isso significa que aquilo que Maria foi convidada a fazer pelo Anjo foi permitir-se ser o ponto de comunicação, o portal, entre o Criador a partir do nada e o vir a ser de tudo que é. Isto é, ela seria, como fato histórico, aquilo que o Santo dos Santos prefigurara. Certamente supera a minha imaginação conceber como deve ter sido para essa mulher descobrir que estava se tornando a porta de entrada da criação; que um dos anjos que ministrava junto a Deus antes da criação estava se dirigindo a ela, convidando-a a tornar-se o portal vivo; que ela se tornaria a encarnação, o assento permanentemente contemporâneo, da Sabedoria, a figura feminina que acompanhou Deus na criação de todas as coisas; que ela de fato se tornaria aquela que, tendo quase que nossa adoração, corrigiria e cumpriria a adoração da deusa cujo culto estava vivo em Jerusalém antes de Josué reformar o Primeiro Templo. Eis como Lucas diz isso:

…ela turbou-se muito com aquelas palavras e considerava que saudação seria esta.

O maior eufemismo de todos os tempos!

Claro que aqui temos um mistério biológico: de onde veio o cromossomo extra que permitiria que uma criança do sexo masculino fosse concebida? E a única resposta que conheço é negativa: não foi de nenhuma paternidade humana, ou de dentro de nenhuma estrutura humana de desejo, de parentesco, de possessividade masculina, de necessidade de controlar ou de perpetuar-se. Antes, veio do mesmo jeito que a Criação vem: como algo que vem do nada. Porém, fixar-se no mistério biológico, que parece ter tido tão pouco interesse para os autores antigos, é não entender o que se pede que Maria viva. Ela está vivendo a criação virgem, nova, fecunda, fresca, repleta de possibilidades em parto constante, não gerida pelos homens, não atada à propriedade de bens móveis e imóveis. E, em vez de fazer isso dentro de uma estrutura sagrada imensa e pesada, como era o caso do Templo, ela está fazendo isso como ser humano vivo, que precisa de proteção em sua vulnerabilidade, como fica claro quando José lhe oferece cobertura contra o potencial assassinato de honra que facilmente teria sido o destino de uma mãe solteira.

Assim, aqui temos o Santo dos Santos subitamente tornado vivo quando o Criador se prepara para investir-se da carne. No proto-evangelho não-canônico de São Tiago, Maria é representada tecendo o véu do Templo quando o anjo vem fazer-lhe a Anunciação. Por mais historicamente inexato que isso possa ser em termos de onde Maria estava vivendo naquele momento, ao menos isso mostra que o simbolismo era bem entendido: o que Maria ficou fazendo durante os nove meses de sua gravidez foi de fato tecer o véu de carne que nos permitiria ver YHWH vir ao mundo. Porém, era da carne dela que ela tecia, e foi a carne dela que assim ficou inextricavelmente enredada em fazer novas todas as coisas.

Essa encenação criativa vivida de Maria continua quando ela se levanta e vai visitar a prima Isabel. Quando Isabel ouve a saudação dela, João Batista pula de alegria em seu útero. O verbo em grego é ἐσκίρτησεν e aparece em dois lugares significativos: é o mesmo verbo que em hebraico descreve Davi dançando e pulando diante da Arca em 1 Crônicas, 15, em que a chegada da Arca é recebida com brados — e o verbo ἀναφονέω é usado para os levitas recebendo a Arca e para Isabel recebendo a prima. Ainda mais significativamente, a mesma palavra grega, σκιρτάω, dar pulos, aparece em Malaquias 3, 20 (4, 2), em que o gênero da protagonista costuma ser traduzido equivocadamente, mas deveria ser:

“Mas sobre vós que temeis o meu nome se levantará o sol de justiça que traz a salvação nas asas dela. Saireis e saltareis (σκιρτησετε), livres como os bezerros ao saírem do estábulo.”

Observe, por favor, o que aconteceu no Evangelho de Lucas: aqueles objetos que eram de culto, usados para atos simbólicos ocasionais, foram cumpridos por alguém, Maria, que começava a viver, lentamente, com espero, em tempo, aquilo para que esses objetos de culto apontavam. O que Lucas está mostrando é como a Criação a partir do nada está se tornado história, uma história real, encenada, vivida, ao longo do tempo. E essa história real, encenada, vivida, prestes a ser desabrochada por meio do protagonismo de seu filho para que todos possamos encená-la e vivê-la, que será ela própria a perfeição que coroa a criação.

Assim, temos no Evangelho de Lucas, assim como nos outros, momentos de tensão entre Maria e Jesus, momentos em que ela não entende, momentos em que ela fica ansiosa, momentos em que ela tem de guardar as coisas até que seu significado possa ficar mais claro. E no entanto, esse espaço, que inclui aprendizado, tensão, e interação, é o espaço dentro do qual a Sabedoria, que dá forma à criação, permitiu que Jesus crescesse em Sabedoria e em estatura. Note que esses momentos de tensão, de mal-entendido, etc., não são como que lapsos embaraçosos no que deveria ter sido uma maternidade perfeitamente ininterrupta, lapsos inseridos a fim de testar nossa fé na Imaculada Conceição. São partes das tensões criativas da encenação, a qual estava sendo executada por seres humanos reais no tempo, e por seres humanos reais que interagiam uns com os outros.

É o todo dessa encenação interativa que é tornado vivo para nós como algo para nós, como algo que pode nos trazer alívio, não stress. Ela significa que podemos reconsiderar, para dar apenas um exemplo, uma certa realidade humana carnal muito particular: os olhos corpóreos de uma mãe cuja expressão ao longo do tempo é moldada pela interação com o filho, sendo paciente quando o filho é impaciente, ficando alarmada quando o filho demonstra confiança excessiva, cansada dos choros e vômitos do filho, desgastada e envelhecida por todo o ofício de simplesmente preocupar-se. Aqui está toda a tensão que é própria da Sabedoria que acompanha a criação e faz da criação uma história vivida. E podemos considerar que é plenamente apropriado para nós ver toda a graça de Deus disponível para nós através precisamente desses mesmos olhos enriquecidos pelo tempo, que são inteiramente específicos de uma mulher. A encarnação sem interação viva não seria encarnação, e a interação viva então se torna, muito devidamente, parte daquilo que a encarnação nos dá.

Acho que isso é ressaltado especificamente por João em seu tratamento da relação entre Jesus e Maria. Em João, Jesus não fala em “Nosso Pai”, como se ele tivesse um Pai em comum com qualquer outro humano. Ele fala em “Meu Pai” ou em “O Pai”. É só no final do Evangelho, depois da Ressurreição, que ele passa a usar um linguajar inclusivo, dizendo a Maria Madalena:

Disse-lhe Jesus: “Não me retenhas, porque ainda não subi a meu Pai, mas vai a meus irmãos e dize-lhes: Subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus”. (João 20, 17).

Em outras palavras, João parece estar apontando para um sentido em que, até que Jesus vá para a morte, e então tenha em sua Ascensão criado esse novo espaço que é a-morte-vivida-como-irrelevância-para-humanos, a verdadeira parternidade de seu Pai ainda não podia ser compartilhada pelos outros. É ao ir para a morte que ele disponibiliza essa paternidade.

Também é curioso que, no Evangelho de João, embora o Evangelista contente-se em referir-se a Maria, mãe de Jesus, como “sua mãe”, Jesus mesmo nunca faz isso. Quando se dirige a ela, é no vocativo aparentemente formal γύναι — “mulher!”. É esse o termo que ele usa em Caná (João 2, 4) e na Cruz (João 19, 26). E eu gostaria de sugerir que, como de hábito, João está nos dando mais do que parece. É como se, até a morte de Jesus, Maria ainda o estivesse gestando, e não parindo-o, mas, em sua morte, ele lhe desse, na pessoa do discípulo amado, um filho, o primeiro de muitos irmãos, nomeando-a mãe dele pela primeira vez. O efeito de estiramento da interação entre Jesus, Maria, e os discípulos, e as circunstâncias da morte dele, é visto como algo que desabrocha tanto um novo formato da parternidade quanto um novo formato da maternidade, e isso é visto como algo criativo e deliberado. [1]

O que me agrada particularmente nisso é que isso parece dar sentido à estranheza do Milagre de Caná. Afinal, naquela ocasião, Maria, por conta própria, e sem que ninguém peça que ela interfira, diz a Jesus que “eles não têm mais vinho”. Jesus parece censurá-la por ser apressada, como se ela o estivesse empurrando para fazer algo antes que esteja pronto:

“O que há entre mim e ti, mulher? Minha hora ainda não chegou.”

Porém, ela não fica zangada, e diz aos servos que façam o que Jesus lhes disser, o que eles fazem. Fiquei muito tempo curioso para entender por que Jesus achava que Maria estava se apressando aqui, no que é solenemente relatado como o primeiro dos sinais que ele executou. E pode haver uma pista no livro do profeta Isaías. Como observou Margaret Barker, o texto hebraico do manuscrito de Qumran de Isaías 7, 11, a versão mais antiga de que dispomos, e contemporânea de Cristo, não traz, como o texto massorético (posterior): “Pede ao Senhor, teu Deus, um sinal”, mas sim, com uma letra de diferença: “Pede um sinal da Mãe do Senhor, teu Deus”. Talvez tenhamos aqui uma relíquia ainda não censurada da religião do primeiro Templo.

Isso ao menos sugere um motivo pelo qual Jesus teria achado que Maria estava se apressando. Ninguém tinha pedido que ela fizesse um sinal, e no entanto ali estava ela tentando fazer com que seu filho fizesse. E a hora de Jesus não tinha chegado ainda — o que, em João, significa a hora da sua morte. Será que não é somente quando ele ocupa de modo criativo o espaço da morte, quando ele lhe concede o primeiro dos muitos discípulos que a chamarão de mãe que ela será devidamente chamada “Mãe do Senhor, teu Deus”, e portanto alguém que pode ser devidamente abordada em busca de sinais? Claro que é típico dessa espécie de encenação vivida de que estou falando que a realidade da abundância e a plenitude do que seria dado excedesse seu devido no lugar naquilo que os personagens julgavam ser o roteiro, e tenha aparecido logo de qualquer jeito, dando ainda mais do que o autor pretendera.

Aqui há algo a respeito do formato do que Jesus estava nos concedendo ao ir para a morte. Ele estava disponibilizando a paternidade de Deus como algo que poderia ser compartilhado por outros que não era ele, mas que se tornariam ele com o tempo — daí a facilidade com que ele fala de seus “irmãos” após sua ressurreição. Porém, essa paternidade não era simplesmente algo celestial e distante. Ela também incluía, realmente, estar instalado numa família, uma família viva de fé, com uma mulher real que seria a mãe de todos os discípulos amados, uma maternidade que é uma parte apropriada da disponibilização da paternidade celestial para nós.

É esse elemento de família que eu gostaria de ressaltar. As interações na história do Evangelho mostram que havia algo turbulento, ligeiramente fora de controle, nos relacionamentos familiares que estão sendo descritos. E acho que isso é uma parte boa e digna da nossa vida na Igreja. Por mais santarrões e sentenciosos, ordeiros e obedientes que sejam os sonhos de alguns machos eclesiásticos, Maria parece ter um centro de gravidade totalmente seu, que não é arrastado por construtos eclesiásticos do que seu Filho quereria, nem submisso a eles. E Deus segue nos doando essa tensão, esse sentido de mais de um centro de gravidade como um alívio e uma liberdade das nossas próprias visões monísticas, unívocas, e assustadas do que é aceitável.

Creio que vale a pena prestar atenção nisto: o “mono” em monoteísmo pode ter ao menos duas valências. Uma delas é restritiva, digamos que zelosamente higiênica, porque Deus está em rivalidade com outros deuses e precisa que tudo seja estreitado, tornado mais exato, pois o risco da idolatria está em toda parte. O outro não está em rivalidade com absolutamente nada, e está profundamente preocupado porque só teremos alegria, liberdade, e felicidade suficientes quando formos libertados do nosso medo da morte e capacitados a ousar participar na vida do Criador. E, quanto mais sinais pudermos ter de que somos amados, incentivados, e capacitados a fazer parte, melhor. É essa turbulência de Deus, cujo monoteísmo é decididamente anti-higiênico, cuja unidade não tem nada a ver com nossos monismos, tentando nos dizer que somos amados, é essa turbulência que significa que o formato da vida em que estamos sendo recebidos tende a transbordar para o nosso mundo por meio das orações e dos protagonismos dos santos — destacando-se entre eles, é claro, o portal mesmo da nova criação, Nossa Mãe Bem-Aventurada.

Assim, ao trabalharmos nos próximos dias questões éticas à luz do hino de louvor de Maria, gostaria de pedir-lhes que recordassem aquela algazarra não-monista cujos diferentes centros de gravidade nos salvam de nossas imagens unívocas de Deus, uma algazarra que é mantida viva de um jeito muito melhor quando não habitamos gaiolas ideológicas, mas uma casa para uma família extensa com cômodos espaçosos, e onde o heroísmo e a luta pelo bem que temos de aprender nunca engolirá por completo a sensação de que estamos seguros, de que somos abraçados, de que há outros estendendo-nos a mão, de que, quaisquer que possam ser as aparências imediatas, estamos muito mais num playground e muito menos numa zona de guerra do que nos inclinamos a pensar. Talvez, então, comecemos a abrir espaço para que a alma de Maria magnifique o Senhor.

Notas

[1] Tina Beattie notou que alguns comentadores viram no uso de “γύναι” por João um sinal de que Jesus estava designando sua mãe como Eva, a mulher original. Isso significaria que, na Cruz, ele é o novo Adão designando Maria como a nova Eva, a mãe de todos os vivos.

Leituras recomendadas:

Tina Beattie, God’s Mother, Eve’s Advocate (Londres: Continuum 2002)

Tina Beattie, New Catholic Feminism: Theology and Theory (Londres: Routledge 2006)

Charlene Spretnak, Missing Mary (Nova York: Palgrave Macmillan 2004)

Margaret Barker, The Great High Priest (Londres: T&T Clark/Continuum 2003)

Margaret Barker, Temple Theology: An Introduction (London: SPCK 2004)

ARCIC, Mary, Grace and Hope in Christ – An agreed statement (Harrisburg/Londres: Morehouse/Continuum 2005)